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"31 meu"

Atualizado: 20 de mar. de 2020

por Daniela Maistrovicz

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Eram por volta das 8:00 da noite, ouvi ao longe um dos amigos da vizinhança gritar : “lá vou eu”...Escolhemos um lugar muito estratégico pra nos esconder, eu e dois amigos, que eram irmãos e vizinhos. Minha amiga era da minha idade, devíamos ter uns dez anos, e o irmão dela era uns três anos mais velho, e naquela situação, ele foi eleito o líder do grupo. Éramos crianças inocentes brincando sem preocupações. Quando a outra amiga da vizinhança, que brincava conosco de esconde-esconde, algo rotineiro na época, começou a contar, corremos nós três pela rua lateral da minha casa, onde ficava o “31 meu”, bem no pilar onde terminava o muro e começava o portão da garagem. Descemos todo o quarteirão numa corrida frenética. Na rua de baixo, viramos à esquerda. Era longe, mas fazia parte de nossa estratégia para sermos bem sucedidos, brincadeira pra nós era coisa séria.


Estávamos então, a uma quadra da nossa meta, na rua paralela a da minha casa, e meu amigo disse resoluto:


- Tenho um ótimo caminho, sigam-me, vamos surpreendê-la.


Com ele nos conduzindo, adentramos num terreno baldio, bem no centro da quadra de baixo, retornando em direção ao ponto zero, o alvo, o "31 meu", que ficava na quadra de cima. Cruzamos todo o terreno, tinha um matinho alto, que no breu da noite, aumentava a emoção e criava um cenário de aventura ainda mais real na nossa fértil imaginação. Chegamos numa cerca, nos fundos de uma casa, o coração acelerado pela corrida e pelo suspense, e de forma corajosa e decidida, “invadimos” as instalações dessa casa (tudo parte da fantasia, da brincadeira, claro, nessa casa morava uma das crianças que brincava conosco também, a rua era a extensão das nossas casas, e a invasão era permitida), nos sentíamos grandes desbravadores enfrentando obstáculos, e só nos interessava uma coisa: chegar ao nosso objetivo.


Então, fomos nos esgueirando pelo muro lateral no escuro da noite, em meio ao silêncio noturno. Vimos pela janela iluminada da cozinha que a avó da Ana, que morava nessa casa, andava pela cozinha, provavelmente preparando alguma guloseima para o dia seguinte.


- Vamos cruzar o terreno e passar por debaixo da janela, ela não pode nos ver... - sussurrou meu amigo já engatinhando em direção à parede da casa.


Os grilos enlouquecidos, pareciam querer nos entregar com seus gritos estridentes. Até que com muito cuidado, chegamos no portão da frente. Dali, no meio das sombras, podíamos avistar a movimentação do “31 meu” sem sermos vistos, uma ótima estratégia.


Ficamos os três ali, quietos, sem nenhum movimento, o coração batendo acelerado, aos pulos, o suspense era total, a eminente chegada ao nosso objetivo estava próxima, tínhamos que nos conter, tínhamos que ter paciência, cada passo, cada ação, cada movimento fazia parte do jogo. Queríamos ser bem sucedidos, e só dependia de nós mesmos. Meu amigo, o líder, disse baixinho:


- Ao meu sinal.......


E aí vimos a nossa amiga, nossa opositora na brincadeira, se distanciar um pouco do “31 meu” pela rua procurando encontrar alguém escondido. Estava longe o suficiente para que pulássemos o muro de um metro, atravessássemos a rua e conseguíssemos bater o “31 meu” antes dela. Era agora ou nunca, havia um risco, mas os riscos fazem parte das ações bem sucedidas, e era um risco muito bem calculado, tínhamos trabalhado muito bem em equipe até então, tinha que dar certo.


Meu amigo deu o sinal:


- Agora!!!!


E então, aquele golpe de adrenalina, aquele frio na barriga de pura emoção, nos impulsionou por cima do muro, e num salto, estávamos no passeio da rua. Olhamos para o lado, nossa amiga já havia percebido nossa movimentação e retornava a toda velocidade. Tínhamos que correr, tínhamos que dar o nosso melhor, era um trabalho em equipe e todos mereciam concluir a missão. Meu amigo, mais velho, o líder, corria mais, e pensou em mais uma estratégia, ficaria posicionado entre a opositora na brincadeira e a sua equipe, assim, chegaria primeiro e atrapalharia um pouco a chegada dela, para que eu e minha amiga, sua irmã, tivéssemos mais tempo. Atravessamos a rua correndo, parecia uma eternidade, nunca chegávamos ao pilar, ao objetivo. Ouvi então meu amigo bater “31 meu” e vi quando se posicionou estrategicamente, mas ela se aproximava rápido demais. Minha amiga e eu subimos no passeio, ao mesmo tempo que nossa vilã na brincadeira teve que desviar de nosso líder, demos uns passos, meio aos tropeções, e num segundo antes dela, batemos e gritamos juntas:


- ”31 meu”.


Que belas lembranças! Isso aconteceu na década de 80, num tempo onde a infância teve mais espaço, quando as crianças podiam brincar livres, uma doce, ativa e livre infância. Minha e de toda uma geração.


Fazendo uma análise, percebo o quanto os espaços urbanos e o modelo da vida de cada época são fatores determinantes nos moldes da infância, e como influem de forma contundente no comportamento da sociedade como um todo. E aqui vale a reflexão: as crianças de hoje serão os líderes de amanhã, que tipo de infância estamos proporcionando às nossas crianças? Será que estão tendo o tempo e o espaço necessário para “serem” e aprenderem a “ser”? Ou será que o “ser” está sendo substituído pelo “ter”? Quais os significados que nossas crianças estão aprendendo na sociedade atual? E que significados irão levar como líderes de amanhã?


Naquele tempo, as ruas literalmente eram extensões dos quintais das casas, e sim, as casas tinham quintais, os muros não eram tão altos e as crianças se apoderavam das ruas, as ruas lhes pertenciam também, e elas brincavam, era permitido que brincassem, da forma que quisessem. As crianças podiam sair sozinhas no quintal, mas dificilmente ficavam sós, naquele tempo as pessoas tinham mais contato físico, quase nem existia o virtual, então era comum que vizinhos se conhecessem e fossem amigos, que crianças fossem juntas à escola, a pé, e que passassem o contra-turno todo brincando, até a noite brincando. Iam juntas comprar pão, lanchavam umas nas casas das outras, arrumavam a mesa e lavavam a louça no final, e se arriscavam, subiam em árvores, andavam se equilibrando sobre o muro, faziam corridas de bicicleta nas ruas, liam livros de aventura em dias de chuva. Coisas rotineiras, que faziam parte da infância e eram aprendizados naturais para a vida. Aprendizados que preparavam as crianças para a vida adulta de forma assertiva, certeira. Mas isso aconteceu naquele tempo, hoje parece que não existe mais lugar e nem tempo para uma infância como essa.


E quem perde? E quem ganha? E o que temos então para hoje?


Todos nós, adultos, somos o que somos, em grande parte, em função daquilo que vivemos na nossa infância. A infância é um treino para a vida adulta. Mas e se o treino faltar?

Quando brinquei de esconde-esconde com meus amigos na minha infância, percorrendo livremente as ruas, as casas, os espaços urbanos, as praças, aprendi a viver em sociedade, aprendi o que é trabalho em equipe, o que é lutar por um objetivo e a sensação que se tem quando nosso esforço nos faz chegar até ele. Aprendi o que é esforço. Aprendi o que é risco e o que é risco calculado, aprendi a controlar a adrenalina no momento da decisão, aprendi a ter paciência e esperar o momento certo de agir, aprendi sobre colaboração, aprendi a administrar as frustrações, pois nem sempre os amigos brincavam daquilo que eu tinha vontade, e aprendi a me impor também, pois por vezes me esforçava por convencê-los, com os melhores argumentos e estratégias que a brincadeira que sugeri era a mais divertida. Desenvolvi minhas habilidades motoras, meus sentidos, minha empatia. Aprendi a controlar as minhas emoções, aprendi a compartilhar, a negociar. Aprendi que somos senhores das nossas vidas, que podemos escolher, mas que temos que arcar com nossas escolhas, aprendi tanto, que sinceramente, poderia ficar escrevendo páginas e mais páginas do que aprendi sendo criança, aprendi muito, e incrivelmente aprendi sem ninguém ter me ensinado nada, apenas vivendo o momento, apenas brincando com meus amigos e treinando para avida adulta sem perceber.

Hoje não é mais assim. E na verdade, as coisas nunca se mantém do mesmo modo por muito tempo, é a evolução natural das coisas.


Hoje, a infância tem outras vivências, alguns interesses não mudaram, mas as crianças passaram a ter novos interesses também, e isso é muito natural e saudável. A tecnologia anda atrelada a vida em sociedade e traz mudanças interessantes, é preciso adaptar-se aos novos tempos.


Mas não foi só a tecnologia que trouxe mudanças. A sociedade mudou muito, o estilo de vida das pessoas hoje, se parece muito pouco com o daquela época. As ruas não são mais seguras, os jardins e quintais das casas diminuíram. As famílias têm menos filhos e na maioria das vezes nem sabem quem são seus vizinhos. Além do trânsito, hoje existe um medo quase irracional de tudo e de todos. A violência urbana tem deixado graves sequelas, tem nos transformado em reféns e tem tirado a liberdade das nossas crianças.

Os filhos da geração que foi tão feliz com sua liberdade, não tem espaços adequados e nem tempo para brincar. Triste é perceber que deixamos chegar nesse ponto.


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